A leishmaniose visceral, também chamada de calazar, é uma doença grave que atinge tanto humanos quanto animais. A doença, provocada pelo protozoário Leishmania infantum e transmitida pelo mosquito-palha Lutzomyia longipalpis, é responsável pelo sacrifício de inúmeros cães no Brasil. Isso por que esses animais, quando infectados, tornam-se reservatórios do parasita e fonte de infecção da doença. A transmissão não ocorre diretamente de um cão para outro ou para um humano. É o mosquito-palha que transmite o parasita, presente no sangue de um indivíduo doente, para um indivíduo são.
Se não tratado, o calazar causa a morte de praticamente todos os pacientes, sendo as crianças, os idosos e as pessoas com sistema imunológico deficiente as principais vítimas. Os doentes, tanto humanos quanto cães, sofrem com o comprometimento do fígado, do baço e da medula óssea, emagrecimento, fraqueza, problemas respiratórios, diarreia, sangramentos na boca e nos intestinos e febre prolongada. O diagnóstico só pode ser confirmado com um exame de sangue, mas os sinais clínicos mais usados para identificar a doença nos cães são típicas lesões na pele, principalmente nas orelhas, na cauda, nas patas e no focinho, e crescimento exagerado das unhas.
Nas cidades, os cães infectados representam uma importante fonte de infecção para outros cães e humanos, porque podem ser picados pelo mosquito-palha, que espalhará a doença. O sacrifício dos cães doentes é uma tentativa de controlar a transmissão da doença, mas essa prática, muito mal vista pela sociedade, tem se mostrado ineficiente em várias partes do mundo. O controle da doença também é dificultado pelo fato de serem, os cães, capazes de permanecerem infectados e aparentemente saudáveis durante anos. Infelizmente, até agora, as vacinas e medicamentos disponíveis para combater a leishmaniose visceral não são 100% eficazes para os cães.
O grupo de pesquisa liderado pelo professor Frédéric Frézard, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), está desenvolvendo um novo tratamento para curar cães com leishmaniose visceral. Utilizando inovadoras ferramentas de nanotecnologia, os pesquisadores criaram cápsulas minúsculas, em escala nanométrica , capazes de carregar o medicamento que mata o parasita, até os locais afetados pela doença no organismo do cão. Essas cápsulas, conhecidas como lipossomas, por serem compostas por lipídios, absorvem o medicamento e o transportam, principalmente, para o fígado e para o baço dos animais por meio da circulação sanguínea. Esses órgãos têm muitos macrófagos, células onde os parasitas se alojam, que capturam o lipossoma e liberam o medicamento encapsulado, exatamente onde está o parasita. Além de criar esses lipossomas, os pesquisadores fizeram alterações em suas características para aumentar a ação do medicamento.
Como é feita a pesquisa?
A pesquisa teve início em 1998 e vem sendo realizada em várias etapas, envolvendo diversos laboratórios da UFMG. A primeira etapa consistiu na produção do medicamento, o antimonial, por pesquisadores do Departamento de Química. O efeito do antimonial contra a Leishmania infantum já é conhecido há décadas. Em seguida, no Departamento de Fisiologia e Biofísica, os pesquisadores produziram os lipossomas, associando a ele o antimonial e verificando a quantidade absorvida do medicamento por cada cápsula, os quais apresentam variações de tamanho. Também foi realizado o estudo da distribuição do medicamento em camundongos, para verificar quais órgãos foram atingidos por ele. Com esses estudos, os pesquisadores conseguiram ajustar a dose do medicamento e aumentar a sua eficácia, realizando, por meio de nanotecnologia, adequações nos lipossomas para aumentar o tempo de permanecia dessas cápsulas no organismo e a sua capacidade de alcançar todos os órgãos infectados pelo parasita causador da leishmaniose visceral.
O primeiro desafio enfrentado pelos pesquisadores foi manter íntegra a estrutura do lipossoma por tempo prolongado, para que o medicamento atingisse todos os locais onde o parasita está presente, carregando a dose mínima necessária para matá-lo. Para isso, os pesquisadores desenvolveram um lipossoma em forma de pó, que permite o encapsulamento do medicamento instantes antes de injetá-lo no animal, diminuindo assim o tempo de exposição do lipossoma fora do corpo e, consequentemente, sua degradação.
O segundo desafio foi permitir que o medicamento alcançasse, em quantidade suficiente, locais de infecção mais difíceis de atingir, como a medula óssea e a pele. Uma solução para isso foi reduzir ainda mais o tamanho dos lipossomas e a modificação da superfície deles, acrescentando a ela um polímero hidrofílico. Os lipossomas com essa superfície diferente são menos reconhecidos pelos macrófagos e, por isso, alguns não são capturados por eles no fígado e no baço, o que permite que eles fiquem circulando por mais tempo no sangue, alcançando uma distribuição mais ampla, como a medula e a pele.
No Departamento de Parasitologia, os pesquisadores avaliaram a eficácia do medicamento em camundongos infectados. Além disso, o grupo estudou a sua eficácia em cães naturalmente infectados, distribuindo os animais em dois grupos, sendo o grupo controle o que recebeu o placebo, e o experimental aquele que recebeu os lipossomas com medicamento. Os grupos foram, então, comparados quanto à resposta ao tratamento. Foram feitos exames (clínico, hemograma, bioquímica sérica e carga parasitária) para avaliar o estado de saúde dos animais antes e depois do tratamento. Foi estudada a capacidade de o animal transmitir a doença para o vetor durante o tratamento e, para confirmar se houve cura, os testes foram repetidos meses após a ela.
Qual a importância da pesquisa?
Os pesquisadores constaram que, em cães naturalmente infectados pela Leishmania infantum, o tratamento com o medicamento convencional, o alopurinol, em associação com os lipossomas encapsulando o antimonial levou à cura em pelo menos 50% dos animais, uma taxa inédita se comparada a outros tratamentos. Esse resultado significa que o parasita não foi mais detectado pelos exames na metade dos cães tratados. Além disso, todos os animais submetidos ao tratamento deixaram de transmitir o parasita para o mosquito-palha, quebrando o ciclo de transmissão da doença do cão para o ser humano ou para outro cão. Portanto, a importância da pesquisa está na descoberta de um novo tratamento para curar os cães, evitando, assim, que os animais com calazar sejam submetidos ao sacrifício. Além disso, o tratamento dos cães infectados reduz a transmissão da doença para humanos.
A associação do medicamento ao lipossoma por meio da nanotecnologia, criando um “nanossistema carreador”, alterou a farmacocinética do antimonial, ou seja, a sua concentração e circulação no organismo, em função do tempo, foram otimizadas. Carregado pelo lipossoma, o antimonial é rapidamente acumulado nos principais locais do organismo onde o parasita se encontra. Outra vantagem é a liberação gradual do medicamento, que permanece por mais tempo agindo os tecidos infectados. Fora da cápsula, a maior parte do medicamento seria rapidamente eliminada pelos rins. Enquanto o tratamento tradicional, sem o uso do lipossoma, deixa menos de 0,1% da dose do medicamento nos órgãos, com a nova tecnologia é mantida cerca de 50% por até quatro dias. Além de aumentar a eficácia do tratamento, os efeitos colaterais também são reduzidos devido à diminuição da quantidade do medicamento administrado ao animal doente e do número de doses necessárias.
Agora, os pesquisadores querem avaliar a eficácia do tratamento com uma mistura de lipossomas convencionais e daqueles lipossomas de circulação prolongada (com superfície modificada), com o objetivo de alcançar a taxa de 100% de cura. Os resultados abrem caminho para a cura da leishmaniose visceral canina e mudança nas medidas de controle da doença, que determinam o sacrifício dos cães com calazar.
Fonte: Canal Ciência