Eles protegem seus donos e muitas vezes são seus únicos amigos verdadeiros. Entenda por que o apego e a ternura entre homem e cachorro são mais fortes nas ruas
Era tarde da noite, Samuel dormia em sua barraca montada em um canto de uma praça na região central de São Paulo. Do lado de fora, um homem percebeu que o lugar estava vulnerável e resolveu aproveitar a oportunidade: se esgueirou pela fresta da tenda de lona e, com uma faca na mão, gritou ameaças. Assustado e com sono, Samuel pouco poderia ter feito para evitar o delito. Mas seu companheiro estava em alerta. Costela é um dos quatro cães que vivem com o morador de rua e guardam a praça de madrugada. Ele percebeu logo que o estranho era mal-intencionado. Não apenas latiu e rosnou para o homem, como também avançou em seu braço. Ao expulsar o invasor, Costela fez bem mais do que simplesmente proteger seu território. Ele também possivelmente salvou a vida de seu dono.
A proteção é apenas uma das facetas da relação mantida entre aqueles que vivem nas ruas e seus animais. Além de guardarem seus donos dos perigos, os cães se mostram seus companheiros inseparáveis. São muitas vezes considerados por essas pessoas como o único ser vivo no qual podem confiar plenamente. Em troca de todo o carinho e amor que recebem, eles dedicam a seus amigos humanos um grau de lealdade que parece não ter limites.
“Ela deve ter pedigree”
É o caso de Samuel e Lobinha, uma cadela preta que apareceu há cerca de sete meses na Praça Sam Rabinovich, no Bom Retiro. Estava tão desnutrida quando chegou que o morador do local precisou molhar a ração antes de alimentar o animal. Hoje, já forte e saudável, Lobinha virou o xodó do homem de 42 anos. “Ela me dá carinho. Gosta de tomar banho, ontem mesmo eu dei, também não pega pulga nem carrapato”, diz. A cadelinha é tão querida pelos moradores da região que já chegaram a oferecer R$100 por ela. “Não quis vender, me apeguei muito. Ela deve ter pedigree. Queria que fizesse um comercial”, comenta Samuel.
Há cerca de quatro meses, Lobinha entrou no cio e atraiu à praça três machos, que acabaram ficando por lá. O Brisa é branco e preto, tem um quê de dálmata e, segundo o morador, é o “dono do pedaço”. Ele protege a Lobinha quando ela está no cio e, em troca, conquistou o privilégio de ser o único a cruzar com ela. E pelo visto tem dado conta do recado: a cadela já espera filhotes. Os outros são o Costela, seu maior protetor, um cão bege de pêlo mais longo que, de acordo com Samuel, tem mais sensibilidade para descobrir a maldade nas pessoas, e o Alemão, também bege, de pelagem curta e porte menor. Irreverente, Samuel ensinou até inglês aos seus cães: ao invés de chamá-los pelo clássico “vem”, ele usa “come on” e, quando quer que parem, diz “stop”.
No trato com a comida é que a intensidade da relação homem-animal nas ruas fica mais evidente. É comum um mendigo ganhar um pão e, mesmo com fome, dividi-lo com seu cachorro. Samuel conta que, em sua busca diária por algo para comer, seus quatro amigos o ajudam muito. “Eles me avisam qual saco de lixo tem comida, começam a cheirar e a latir”, diz.
“Ele confia em mim”
Longe dali, em outra parte da cidade, é possível verificar o mesmo apego entre os moradores de rua e seus animais. Embaixo do Viaduto Mofarrej, próximo à estação de trem Vila Leopoldina, moram em torno de dez pessoas. Ali, José Eduardo Sobrinho vive há nove meses com seu cão, o Jerônimo, que tem cerca de quatro anos. Assim como Lobinha, foi ele que veio de encontro ao dono: em uma rua próxima, José passou pelo animal, que desde então permaneceu ao seu lado. Ele afirma que os outros moradores do local não gostam de Jerônimo. “Acham que ele é viado, só porque ao invés de chegar lambendo parece que vem rebolando”, conta.
Mesmo não sendo tão bem tratado pelos amigos de José Eduardo, o cachorro não retribui da mesma maneira. O morador, de 33 anos, mencionou um episódio envolvendo um de seus colegas no qual a participação de Jerônimo foi decisiva. “Um dia, um amigo estava dormindo em um lugar meio alto e caiu, ralou todo o rosto. Ele veio e latiu para me avisar”, relata. Ainda assim, o vínculo mais forte e fiel é com o dono. Segundo ele, além de guardar seus pertences, o cão é seu maior companheiro. “Se for andando daqui até o Japão, ele vai junto”, diz. Nas palavras de José, a relação entre os dois é de amor, carinho, afeto e confiança. O motivo de tamanho envolvimento, de acordo com o homem, é simples: “porque ele confia em mim”.
“Ele tem o mesmo nome que eu”
Embaixo daquele mesmo viaduto, João Batista Dornellas vive com seu amigo canino, o Jow. O porte do animal sugere que corre sangue de rottweiler em suas veias. Quando não está ali, João costuma rodar pelas ruas da região com sua carroça em busca de materiais recicláveis, uma das poucas formas de juntar algum dinheiro lícito nas ruas. Aonde quer que vá, Jow o acompanha. “Ele guarda a minha carroça, só os amigos podem mexer. Se chegam perto de mim ele rosna”, diz o homem de 50 anos.
Ele afirma que seu cão é quem manda ali, basta pedir para “pegar” que ele avança, tanto em cachorros quanto em pessoas. Para demonstrar que não estava exagerando, gritou “pega” e, de imediato, o animal partiu para cima de Jerônimo. Antes que o outro pudesse se machucar, ordenou que parasse, e a resposta foi instantânea. Quando se vive nas ruas, ter um protetor leal, forte e obediente pode fazer toda a diferença.
O encontro dos dois aconteceu de forma inusitada há cerca de oito anos: o morador de rua andava com sua carroça por uma favela no bairro da Água Branca, próximo à Marginal Tietê, quando notou que a estrutura estava balançando. Quando foi checar, deu de cara com Jow comendo suas marmitas. Por incrível que pareça, não houve briga entre os dois, e desde então não se separaram. “Ele tem o mesmo nome que eu”, diz o homem, emocionado. “Esse cachorro é meu melhor amigo, ele me defende. É melhor que minha família”.